Saturday, December 22, 2018

O pouco que ainda há cá dentro
debate-se como um embrião ansioso.
Recusa-se a ficar;
quer sair, como tudo o resto...
Partir e deixar-me vazio
sem remo nem vela,
sem leme, sem suporte para o pôr sequer.

Não há porto em que a minha alma atraque.

Haverá sequer alma neste mar sem espuma...

Monday, December 17, 2018

Emília do segundo esquerdo

Emília preparou a sopa
e cozeu o vitelo em chama lenta.
Foi lavar a roupa
e pegou numa camisa cinzenta.

Encostou-a a si
e acariciou o tecido —
queria ir-se dali,
queria fugir do marido.

Ele chegou, comeu o vitelo
e quis tê-la nos braços.
Ela gritou, pegou no cutelo
e cortou-o em pedaços.

Agora Emília sorri aberto
bem trancada atrás das grades,
não quer ninguém por perto
e nada lhe dá saudades.

Friday, December 14, 2018

Qual é a forma
dos teus lábios redondos?
Quando queria descrever-me
fazia-o com todo o detalhe,
mas agora que quero recordar
a cor de um só fio do teu cabelo,
a memória flutua,
flutua só.

Thursday, December 13, 2018

Fogo vadio

Fogo vadio,
fogo de vista.
Não pares de arder
nem que o vento insista.

Fogo-fátuo,
fogo delator.
Onde há fumo há fogo
e onde há fogo há amor.

Fogo selvagem,
fogo deflagrou.
Maldita a beata
que em mim te ateou.

Fogo ardeu,
fogo fugiu.
Nunca mais ninguém o viu.

Monday, November 26, 2018

Amor de escola

Amor de escola,
amor de verão.
Sejam férias eternas,
não deixo escapar
o aperto da tua mão.

Amor de escola,
amor eterno.
Os teus lábios doces
não parecem gretar
nem no mais frio inverno.

Amor de escola,
amor-perfeito.
Não descanso os olhos
senão quando encosto
a nuca ao teu peito

Amor de escola,
amor daninho.
Cresceste-me discreta,
fermentaste-me na alma
e agora és o meu vinho.

Sunday, November 25, 2018

Folhas cadentes

E finalmente, por esta manhã, talvez todas as folhas tenham regressado às suas árvores.
Talvez os ventos soprem amenos e a chuva já nem molhe
e a urze resplandeça nas encostas da loucura,
enraizando-a na esperança que um dia o sonho a tolhe.

E amanhã, por esta hora, ainda o solo seja um deserto
que perdeu a aridez e o ardor
e do qual cada grão de areia
seja uma ideia,
um rumor.

Wednesday, November 21, 2018

Herbanário

Dizem-me:
Não pises a relva!
E eu não piso.
Não por me importar
com os sentimentos
de quem a plantou,
nem sequer com os
de quem dela trata
e muito menos com
aquilo que pensam de mim.
Não piso a relva
porque me importo
com a relva.

Saturday, November 10, 2018

Pedra basilar

Perdi a peça
do canto do puzzle.

Costumo começar sempre
pelos quatro cantos,
depois as bordas todas,
até que estas se encontrem,
peça a peça...
peça a peça...
primeiro dois a dois,
depois os quatro, entre si.

Por vezes apercebo-me
que a distância que previ
entre cada um dos cantos
era absurda e comicamente
errada.
O puzzle só expande
quando começa a ser construído,
vai expandindo, dilatando,
até que as peças de encontrem
como membros apartados
de uma grande família.

Perdi o canto inferior esquerdo.
De todos os cantos, é logo o mais importante.
Diria até que é a peça mais importante,
pelo menos no início,
porque no fim,
a faltar uma peça,
não importa muito qual.

Perdi dias de sono
até me conformar,
e então,
com toda a coragem reunida,
com o coração cheio de garra,
construí o resto do puzzle,
peça a peça...
peça a peça...
até faltar apenas aquela.

Não sei se pendure um puzzle
com uma peça a menos
na parede da sala,
se pinte em papel o que ali falta,
se o tape com um candeeiro de pé alto
para ninguém se aperceber da falha,
ou se o defaça
e volte a arrumar na caixa.

É.
Talvez seja melhor arrumar.
Sinto-me triste...

Triste pelo tempo que perdi
a construir o puzzle,
que podia ter sido melhor aproveitado...

Triste pela pessoa que me ofereceu o puzzle,
que nunca o verá concluído quando me visitar
e pensará que não gostei da prenda
ou que não gosto de puzzles...

Triste pela minha gata a quem neguei colo,
que fechei noutro compartimento
com medo que me engolisse uma peça
ou a enfiasse por baixo de um dos móveis...

Triste pelos meus pais que fizeram um filho
tão desastrado
que é incapaz de guardar um puzzle com cuidado...

Triste pelo mundo, pela condição humana,
que leva gente como nós a morrer de fome
do outro lado do mundo
ou na rua que evitamos atravessar
todos os dias
e mulheres e negros a ser tratados
abaixo de homens e brancos
e destina poetas
a falhar na vida
e que leva meninos bons
a virar homens maus
e homens bons a fazer actos maus
e incompetentes como eu
a perder a peça mais importante
do seu puzzle...

Triste pelos filhos que irei ter um dia,
que irão viver num mundo
tão cruel,
tão austero,
que se sujeitarão eles próprios
a perder a peça do seu puzzle.

Peça a peça...
peça a peça...
até a pedia, se soubesse a quem.

Thursday, September 20, 2018

Eixo dos yy

Há dias em que me sinto mais alto do que noutros.
Não alto de altivez, nem alto de inspirado ou elevado.
Sinto-me física e objectivamente mais alto,
mais comprido...
verticalmente!
Adquiro um ponto de vantagem
que me permite olhar de cima para baixo
sem sequer estar cabisbaixo,
faz-se uma homotopia sobre mim
que deixa todas a partes do corpo no mesmo lugar:
coração com pulmões,
cérebro com cerebelo,
o pâncreas ali enfiado ao pé do intestino…
Nem sei se algum deles cresce,
ou se crescem todos.
A verdade é que estou mais alto,
o que pode significar que estou mais cheio de vazio
como o espaço que há entre as estrelas
e tão silencioso também.
Quando acordo mais alto,
é mais fácil olhar as pessoas de frente,
ou pelo menos mais natural.
Pergunto-me se todos os outros
são sempre assim tão longos
e se a sua altura também varia.
Nem sei quão alto será possível uma pessoa acordar,
ou se há um intervalo pessoal para cada um
dependendo da sua altura padrão.
Padrão o qual poderá ser uma média ou mediana,
o que se ata com outros factores
como a régua dos dias
ser discreta ou contínua…
Bolas, agora que penso nisso lembro-me de acordar mesmo alto um dia,
devia ter para aí dois metros,
ou lá perto andava…
Curioso o quão alta uma pessoa pode ser, por vezes.
Nunca tive vertigens.
Nem vertigens, nem uma vertigem sequer!
Se calhar nunca fui alto o suficiente,
o melhor é continuar a meter adubo à noite,
regar-me de manhãzinha
e fazer calistenia ao longo do dia.
Pode ser que acorde tão alto,
eventualmente,
que consiga ver todas as pessoas do mundo
ao mesmo tempo…
Glória a mim na altura,
e se chegar a ter vertigens,
lá terei que me amanhar.

Tuesday, August 21, 2018

Salada de fruta

Relaxa, a vida não é
cerejeira sem ramos
nem amêijoa de lábios fechados.

E se o fosse, bastava
um escadote para a subir
ou um alicate para a abrir.

Há quem tente subir cerejeiras
de alicate
e quem se aventure
a abrir os beiços às amêijoas
a escadote.
Com um alicate bem comprido
ou um escadote de pinças
quem sabe, talvez...

A vida tem cerejas e berbigões.

Relaxa e pára para pensar.
Gostas mesmo de cereja e berbigão?
Quem tem pérolas é a ostra,
a amêijoa, não tanto.

Há vida feita de hojes
e vida feita de amanhãs
mas todos somos iguais
deitados num pomar
contemplando as maçãs.

A vida tem maçãs.
A vida sabe a maçã.

A maçã é um fruto
que agrada a toda a gente.
Em sumo, não tanto;
com álcool é diferente.

A vida não é a medida de nada.
Tem frutos da árvore
e frutos do mar.
Quando se misturam numa taça
vem uma voz indignada.

Na verdade, a vida não é
a medida daquilo que sou.
Um suspiro aqui, um grito ali
e pronto, já passou.

Monday, August 13, 2018

Amanhã é segunda-feira
e não, hoje não é domingo!
Rejubila! Rejubila!
Que se saltou em falso
o dia mais humano da semana
e não tiveste que te dar a ti mesmo
durante um dia
da tua recôndita existência.
Lancem foguetes,
ou não os lancem
para não incomodar a mão que trabalha,
a mão cortada que trabalha sozinha,
escreve relatórios em cursivo.
Cursa, a mão, cursa tão bem
que tem um canudo a fazer de braço.

Poema em forma de couve

Tens razão. Tens toda a razão.
Eu tenho palavras bonitas,
mas tu tens a razão
absoluta e indisputável
(indubitavelmente,
inquestionavelmente)
e dentro de cada uma das tuas razões
tens mais razões fractais
que roçam a beleza de um cristal de gelo.

A tua razão é tão sólida
que construíste com ela uma cidade
inteira, inteirinha,
cheia de todas as coisas que as cidades têm-
prédios e árvores e pessoas e cães
e a merda nas ruas e o rebuliço das seis
e cada uma das ruas tem cartazes
onde promoves o teu próprio decoro
bem como postes de luz raio-x
que perscrutam as meloas gigantes
no lugar da cabeça dos seus habitantes.

Indubitavelmente, inquestionavelmente,
trabalhas as tuas palavras com o amor
de quem esfrega um formão
num careto de nariz comprido
ou com ele tira a cera dos ouvidos
e aproveita para dar uma coçadela no cérebro.
Coça, coça...
pode ser que as ideias aflorem
e com os seus botões construas um jardim
na tal tua cidade.

(Tens o dom da análise absoluta)

Além do dom da análise absoluta,
(análoga ao dom do ouvido absoluto
que tinham as crianças daquele documentário
que vi no outro dia)
tens uma elegante abjecção
pelo uso das palavras de uma forma
não descritiva
liberal
recombinadamente absurda;
oi! oi! estou a usar palavras
sem seguir
regras
talvez porque sou assim
talvez para te causar comichão
e lá vais tu pegar no teu formão
coça, coça...!
coça enquanto eu me divirto
e você advirta-se também
do poder das palavras sem razão
ou - abjectivamente -
com quantidades moderadas
dela.

Para te fazer a desfeita
- mais, para te matar -
vou fazer tudo o que abominas
vou escrever palavras ácidas
nas paredes desta cidade
não
vou apagar todas as ideias
que tiveste até hoje
pior
vou pegar nelas todas
e gastá-las num só poema
todas as notas que carinhosamente
arremessaste para um canto da gaveta
todas as promissoras rimas e não-rimas
que julgavas um dia vir a colocar
num sensível poema cheio de razão
cheio de razões
e hoje é o dia
em que tos roubo todos da mão
e os largo ao mundo.

Analisa agora isso, vá,
pega nos cacos a que chamas versos
e recicla-os, reutiliza-os, renova-os.
Tens o dom da análise absoluta, tens...
Tu, porque não tens o dom da análise relativa,
não percebes como o poema é mais forte do que o homem
não percebes que as ideias são infinitas
que se as gastares outras mais fortes e melhores
tomarão o seu lugar
como um osso que se parte regenera mais rijo
e as palavras
ai, as palavras...
são a natureza a retomar o seu curso
são as cheias que engolem a cidade costeira
o glaciar que se desprende com o calor
e o tremor que abre rachas no coração.
Já não confio em mim.
Em tempos o meu maior confidente,
acreditava que cada risada
vinda do quarto do lado
pertencia a alguém com cara
e lábios e dentes e língua.

Hoje não sei, não posso saber
se é gente ou se é fantasmas
ou se eu próprio ri
e do que ri
e porque ri,
não tem piada...

Se a mim delego
tantas partes da minha vida,
que fazer, que fazer,
oh, toda uma vida nas mãos
de alguém em quem não confio,
alguém por quem tenho estima
mas não confiança.

Se na rua me decidir
a deixar o embalo dos peões
e a caminhar com os carros,
que será de mim, que será de mim,
ou se tomar os comprimidos errados
ou porventura mergulhar
num lago demasiado fundo
que será de mim que não sei nadar
mais que uma dúzia de metros,
que será de mim...

Que voz é esta que soa
ao piano contemporâneo
dos compositores malditos
e absurdos,
onde foi a minha,
ai onde foi a minha?
Não era uma voz doce
mas era minha
e eu aceitei-a...

Compreendo que eu seja eu.
O espelho é o espelho
e eu sou eu,
certo.

E compreendo que
quem deposita a confiança
é também o depósito,
certo.

Só me custa perceber
por que razão
as minhas pegadas
estão voltadas
para trás.
Para trás,
vejam lá!

E porque é que
quando baixo os braços
eles não pendem
parelelos ao corpo,
porque têm espasmos
que não mos deixam baixar
nem erguer verticalmente
ortogonalmente...

Não percebo o porquê
de de manhã
vomitar moscas,
sim,
moscas!,
antes de poder começar o dia,
um feixe de moscas ininterrupto
com todo o seu zumbido,
toda a sua asquerosidade,
e toda a sua falta de sonho
e de rumo na vida.

Tirem-me de mim! Tirem-me de mim!
Descarnem o meu corpo
da minha mente
e deixem-me ser sem ser.
Deixem-me só ser, sem ser...

Saturday, August 4, 2018

Queixume para cordas, percussão e solidão francesa

Ai Teresa,
que eles são tantos
e portam tantas máscaras
tão diferentes
uns de olhos pintados de negro
outros de nariz aguçado.

Ai Teresa,
as mãos deles
roçam o ar que me rodeia
e as unhas redondas e bem tratadas
dão mais pavor que as garras podres.

Ai Teresa,
acode-me,
que as vozes são tantas
e tão harmónicas
que uma delas há-de reverberar
com a frequência do meu coração.

Ai Teresa...
Ai...
Eles estão tão perto
e tu tão longe, Teresa...

Ai Teresa...

Ai Teresa,
segura-me
que eles vêm a mim.

Saturday, July 28, 2018

A tua sensibilidade,
tu que queres viver no meio das árvores
e com as árvores,
sempre me empequenou.
Eu quero ser as árvores.
As árvores não sonham,
as árvores não julgam ninguém,
as árvores, não sei.

Wednesday, July 25, 2018

Recibo

Passas seis meses a poupar para um telemóvel.
E meio!
Gostas de estar contactável
em cada momento acordado,
sua samsunga do diabo.

Depois, mais três mesitos
e dá para um novo televisor,
porque a vida é tão boa
e tudo nela é teu por direito.

A roupa que trazes no corpo
meia russa do sol e do suor
que não renovas desde a penúltima vez
que trocaste de telemóvel
poderia esperar mais um pouco,
mas sabes que não te chega
nem nunca te chegará
porque todos os que te abraçam
param para ver a etiqueta.
Também não é por mais um mês
de horas-extra-extra-extra,
com três X, por favor...

Entretanto o motor do teu carro
começou a fazer um ruído
e, porque não é a primeira vez,
melhor será trabalhar mais um anito
para substituir a máquina toda.

E quando pensas que finalmente
podes começar a poupar
durante um ano e um rim,
menos coisa mais coisa,
para ter direito a um dia da tua vida,
sai um modelo novo de telemóvel
e assim por aí fora...
e assim por aí fora...

Tuesday, July 24, 2018

Sentido proibido

Foges da vida com toda a paixão,
com todo o fogo de quem por ela luta
quando a ponta do último dedo
escorrega ainda agarrado à escarpa.
Temes este duelo cruel de uma ronda,
uma partida à melhor de um, sem handicap,
sem direito a desistir, nem qualquer escape.
Preferes deixar-te morrer
a arriscar que a felicidade
não seja tudo o que foi cantado
neste tempo e nos outros
e não seja em si mesma
diploma de proficiência na vida.

Se te deixas apenas ir morrendo
de braços caidos ao longo do corpo
porque pensas que deixar-se viver
exige mais esforço e dedicação,
ainda não te deste ao trabalho
de humedecer um dedo na boca
e de o erguer alto na tua frente,
para perceber em que sentido
vêm os ventos que empurram
cada um e todos de nós
como bonecas de trapos remendadas.

Tens medo.
Aterroriza-te a ideia de ser
quando podes simplesmente estar.
Não te censuro, não te posso censurar,
porque nem te dignas a existir.

Sunday, July 22, 2018

Antes que a estação se acabe

Embrulha em papel de escola
uma madeixa do teu cabelo
cor de chanson dos anos cinquenta
e entrega-a ao carteiro
antes que a estação se acabe.

Virá num desses camiões modernos
de uma empresa norte-americana,
consórcio pertencente a outra
do moderno império chinês,
mas será o teu cabelo ainda.

Antes que a estação se acabe,
vem-me visitar no caminho
de casa para o restaurante,
do restaurante para a labuta,
onde me apanhares a jeito.

Espia-me por dois furinhos
numa revista tamanho A5,
mas não deixes que eu te veja,
não me deixes sequer cheirar-te.

Não me entres pelas narinas,
pelos ouvidos nem pela boca,
fura-me como uma bala na cabeça,
mesmo sobre a têmpora esquerda...

De cada vez que dou por mim
a ansiar novas tuas
no correio
nos ecrãs
numa nuvem
ou escondidas numa factura da casa,
percebo o quão mais alta a tua voz é do que a minha.

O melhor mesmo será pôr um travão no tempo
e nunca deixar que a estação se acabe...

Pintura a tinta de esferográfica

O contorno do teu corpo contra o céu errante, quando marcado no ar em volutas de tinta branca, não dura mais que um incenso, erra rápido como as nuvens no céu e como tu, em cada decisão que te leve para longe de mim. Deixa-me que te pinte em tinta-da-China, do império antigo que já errou para um passado então presente mas do qual nunca sairá, como o nosso romance intemporal, do tempo dos bobos e das rainhas folhadas. E como uma lâmina de relva balança ao balanço do vento, tu, daninha, danças uma bossa velha que me desperta o centro geodésico do corpo humano. Mais que tudo, admiro-te por me fazeres humano...

Sunday, July 15, 2018

Preciso de escrever para ser feliz
e preciso de ser feliz para escrever
talvez qualquer dia
comece uma delas,
um dia destes.

Thursday, July 12, 2018

Alegre canta um passaroco
no lado mais verde de um tronco oco.
O mundo é um lugar cruel,
e eu nele...

Thursday, June 28, 2018

Mu

Cabeça, vazio e pés,
pouco mais do que isso.
Cabeça para segurar o cabelo,
pés para segurar o vazio,
nada para o encher.
Corpo ermo, grande bolha de éter,
serve de arrumação para pequenas bugigangas que nunca comprei
e nas quais não sei se sequer alguma vez pus a vista.
Corpo-estante de plástico porque a madeira me está cara,
incha mais no inverno
e aumenta o risco de ganhar bichos dentro do corpo, no verão.
O corpo é vazio porque eu prefiro que assim o seja.

Tuesday, June 19, 2018

Carta de abdicação ao direito à imagem

Venho por este meio abdicar ao direito à imagem.
Não abdico ao conceito nem ao significado, apenas à imagem na sua forma mais cândida, estética, ao conforto de pousar os olhos num pássaro poisado sobre um ramo desabrochado, bem como à curva do peito de uma mulher que cai sobre a anca e as coxas como o caminho curvilíneo que levava à escola da minha infância. Não abdico nem das palavras doces da mulher, nem do que aprendi em dita escola, nem do que aprendi no caminho para a dita escola.
Abdico da imagem da floresta, mas conto as árvores como letreiros que anunciam a palavra, o conceito, árvore, e, em letras pequenas por baixo, pequenas descrições, carvalho ou castanheiro, salgueiro, chorão, alta ou miúda, com folhas ou desnuda. Tudo com número de série e código de barras encriptado e um carimbo oficial do ministério da botânica.
Não abdico da minha presença por baixo de uma dessas árvores a dormir uma sesta, com folhas mortas na cabeça. Já à fotografia que sorrateiramente me tiraram, queimo-a numa fogueira de chamas transparentes associado a um qualquer gás muito raro e pouco nobre.
Abdico única e exclusivamente da imagem pura, física, dos raios de luz que faiscam por mim adentro, da imagem tal e qual se pode pintar. Não abdico nunca de uma conversa com o pintor.
Abdico vampiricamente do meu reflexo no espelho na sua dimensão de ecrã de alta definição, mas componho a franja torta como me ensinou o meu pai, agora num jeito talvez mais moderno, como um pássaro exótico exibe a sua crista, reconhecendo cada fio de cabelo como um indivíduo livre, capaz e ciente.
Porque virar cego é inconveniente e perigoso, pisco os olhos ao contrário. No lugar de os fechar uns instantes de poucos em poucos segundos, mantenho-os fechados por definição e abro-os de quando em quando. Restam algumas imagens quietas depositadas contra a minha vontade no fundo das inúteis orbes brancas que ficaram na minha cara como vestígio evolutivo. Infelizmente, ainda preciso delas. Não para ver. Apenas para não cair.

Saturday, June 2, 2018

Retrato de um demónio que dança

Achei-te, demónio em forma de menina,
no caos de um dia frio de Abril
em que voavas sob a multidão, subtil,
sufocada pela tua sina.

Da tua boca, uma pronúncia arrastada da terra do sobreiro,
camuflada numa voz menina atrás de uma cortina de fumo,
ajuda-me, suavemente, a escolher o meu rumo
e vê-me hipnotizado por horas - ou um dia inteiro.

Os teus cabelos, como rio de sangue turvo,
escorrem directos, de forma devassa,
e, sussurrada no ar, fica uma promessa
de voltarem a pairar em cor de corvo.

És um espelho partido que ainda reflecte,
um retrato meu pintado por alguém que nunca me viu,
de uma tez tão pálida como a neve que derrete
lenta e sem compromisso, num compasso frio.

E o teu corpo dança na roda da vida,
dança como eu nunca soube dançar;
uma dança sensual que me convida
a estender-te a mão e ser o teu par.

Contigo dança um vestido de duas cores.
É branco e negro e roda contigo, mas não
é ambos ao mesmo tempo!, são
dois polos incompatíveis - o dos prazeres e o das dores.

Envoltos num véu negro, fino e inseguro,
encontrei dois olhos em espiral confusa.
Olhos plenos, que a minha face recusa
contemplar, pois procuram o mesmo que eu procuro.

Olhemo-nos então, distantes, até eu perceber
que, quando te contemplo da cabeça aos pés,
desprezo tanto quem tu és
quanto admiro quem tu queres ser.

Tu és o interlúdio entre o Céu e o Inferno,
mas, minha cara,
eu não me ajoelho
perante anjos nem demónios.

Wednesday, May 30, 2018

Ainda os mesmos

Mostram-nos um caminho a talha dourada
que acaba, sem bote, frente a uma ilha.
Estendem-nos um Game Boy com meia pilha
e nele uma cassette que não contém nada.

E mais meia dúzia de palavras inspiradoras, desgastadas,
Já sem tinta, tiradas de um velho conto de fadas,
com o aroma inconfundível da naftalina
e que é só para o menino, ou só para a menina.

A lata deles não é a mesma lata onde vem toda a sacarose,
toda a falsa doçura, todo o gás que não absorvemos como nutrientes,
toda a cafeína que nos deixa exaltados, depressivos ou doentes,
conforme a percentagem, o sabor, a marca e a dose.

Não, a lata deles é outra, é vil...
É a de uma criança que constrói um castelo de areia
e culpa o irmão mais novo quando o mar o rodeia
e engole, torre a torre... Uma lata pueril.

Eles, lá na frente, no fim do rasto de lesma
que deixaram pelo chão fora, quando a idade era a mesma,
e nós, sem equilíbrio, arrastamo-nos pelo escorregadio chão...
É que já nem um lírio e um canivete nos dão!

Monday, May 14, 2018

Quietude espumosa sem trave de segurança -
cresces em forma de glosa como um silêncio que dança,
trazendo máscaras sem face que gritam sons mudos,
do teu ventre tudo nasce: todos os nadas e todos os tudos.
Fosse eu mais sossego e menos grito,
Com mais desapego ao corpo que habito,
Então mais máscaras dançariam.

O soterrado

Não sei mentir-te da mesma forma que minto a mim mesmo.
Os teus olhos ubíquos não me deixam,
embora dominando a arte da auto-mentira, em tempos.
Cada pequeno grão de pó da tua presença,
acumulado, deixou-me soterrado em loucura e risos fáceis.
O soterrado. O enterrado com a própria pá, que perdeu a chance de subir à superfície enquanto a terra era ainda fina e húmida.
Pára de não me olhar pelas costas.
Pára de não me incomodar a estranhas horas na noite
e de não criar expectativas com palavras
encriptadas que me deixariam potencialmente confuso.
Aquela doce confusão combustível...
Esse riso mata-me e esfola-me, é gás que corrói
tudo tudo tudo pára.
Tudo pára.
Dor de barriga de criança que não quer ir à escolinha mas que não deixa de se sentir em força.

Potro

Anda, anda, pequeno potro,
Cada dois passos, três ideias.
Um puxa-te pelas rédeas
E chicoteia-te, o outro.

Não te deixam andar a trote,
E se puxares demais de forte,
Cais de frente ou de lado,
Pobre cavalito esganado.

Um dia a ferrugem, com sorte,
Comerá as podres rédeas.
Corre, nesse dia, corre para Norte

Sê mais cavalo e menos potro,
Puxa convicto, anda, parte-as!
Com sorte ainda não estejas morto.
Passaste no muro onde eu estava sentado,
Olhaste-me de lado, depois de frente
E, de novo, de lado.
Seguiste com atenção o movimento da minha caneta
Que eu movi como um pêndulo.
Depois de breves minutos,
Voaste, com um grito, sobre os socalcos que levam ao rio
E sobre o rio...
Adeus, amiga alada,
Nunca mais te verei
E, mesmo que te veja,
Não te saberei distinguir das outras.
Descasco lentamente um ovo cozido. A casca rija de uma maciez granulada grita-me que não, suplica-me, e, quando vê que eu não desisto, arremessa-me insultos, porque eu sou fraco e não tenho a perícia nem a coragem para a rachar. Assustado, deixo cair o ovo no chão de granito.
Gosto dos teus defeitos.
São belas as rugas encarquilhadas dos cantos da tua boca
E as manchas escuras do teu pescoço, como doença nas folhas de uma videira.
Mais do que do que tens de bom,
Gosto da curvatura do teu nariz alongado,
E mais do que tudo do amor que não tens por mim.

Wednesday, April 4, 2018

Hoje, não sei se trove...
Vejo tantos a mal-trovar trovas cheias de nada
que enquanto aqui nem chove
lá até faz trovalhada.

Thursday, January 11, 2018

Carta de amigo

Lembras-te, Gonçalo, de todos os concertos
A que fomos juntos
E de todas as sessões de cinema
Que partilhámos?
Éramos eu cá e tu lá.
Conhecemo-nos como recrutas
Ao serviço da nossa pátria
Pelo menos, é assim que eu me lembro,
Mais ou menos.