Monday, August 13, 2018

Poema em forma de couve

Tens razão. Tens toda a razão.
Eu tenho palavras bonitas,
mas tu tens a razão
absoluta e indisputável
(indubitavelmente,
inquestionavelmente)
e dentro de cada uma das tuas razões
tens mais razões fractais
que roçam a beleza de um cristal de gelo.

A tua razão é tão sólida
que construíste com ela uma cidade
inteira, inteirinha,
cheia de todas as coisas que as cidades têm-
prédios e árvores e pessoas e cães
e a merda nas ruas e o rebuliço das seis
e cada uma das ruas tem cartazes
onde promoves o teu próprio decoro
bem como postes de luz raio-x
que perscrutam as meloas gigantes
no lugar da cabeça dos seus habitantes.

Indubitavelmente, inquestionavelmente,
trabalhas as tuas palavras com o amor
de quem esfrega um formão
num careto de nariz comprido
ou com ele tira a cera dos ouvidos
e aproveita para dar uma coçadela no cérebro.
Coça, coça...
pode ser que as ideias aflorem
e com os seus botões construas um jardim
na tal tua cidade.

(Tens o dom da análise absoluta)

Além do dom da análise absoluta,
(análoga ao dom do ouvido absoluto
que tinham as crianças daquele documentário
que vi no outro dia)
tens uma elegante abjecção
pelo uso das palavras de uma forma
não descritiva
liberal
recombinadamente absurda;
oi! oi! estou a usar palavras
sem seguir
regras
talvez porque sou assim
talvez para te causar comichão
e lá vais tu pegar no teu formão
coça, coça...!
coça enquanto eu me divirto
e você advirta-se também
do poder das palavras sem razão
ou - abjectivamente -
com quantidades moderadas
dela.

Para te fazer a desfeita
- mais, para te matar -
vou fazer tudo o que abominas
vou escrever palavras ácidas
nas paredes desta cidade
não
vou apagar todas as ideias
que tiveste até hoje
pior
vou pegar nelas todas
e gastá-las num só poema
todas as notas que carinhosamente
arremessaste para um canto da gaveta
todas as promissoras rimas e não-rimas
que julgavas um dia vir a colocar
num sensível poema cheio de razão
cheio de razões
e hoje é o dia
em que tos roubo todos da mão
e os largo ao mundo.

Analisa agora isso, vá,
pega nos cacos a que chamas versos
e recicla-os, reutiliza-os, renova-os.
Tens o dom da análise absoluta, tens...
Tu, porque não tens o dom da análise relativa,
não percebes como o poema é mais forte do que o homem
não percebes que as ideias são infinitas
que se as gastares outras mais fortes e melhores
tomarão o seu lugar
como um osso que se parte regenera mais rijo
e as palavras
ai, as palavras...
são a natureza a retomar o seu curso
são as cheias que engolem a cidade costeira
o glaciar que se desprende com o calor
e o tremor que abre rachas no coração.

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