Tuesday, June 19, 2018

Carta de abdicação ao direito à imagem

Venho por este meio abdicar ao direito à imagem.
Não abdico ao conceito nem ao significado, apenas à imagem na sua forma mais cândida, estética, ao conforto de pousar os olhos num pássaro poisado sobre um ramo desabrochado, bem como à curva do peito de uma mulher que cai sobre a anca e as coxas como o caminho curvilíneo que levava à escola da minha infância. Não abdico nem das palavras doces da mulher, nem do que aprendi em dita escola, nem do que aprendi no caminho para a dita escola.
Abdico da imagem da floresta, mas conto as árvores como letreiros que anunciam a palavra, o conceito, árvore, e, em letras pequenas por baixo, pequenas descrições, carvalho ou castanheiro, salgueiro, chorão, alta ou miúda, com folhas ou desnuda. Tudo com número de série e código de barras encriptado e um carimbo oficial do ministério da botânica.
Não abdico da minha presença por baixo de uma dessas árvores a dormir uma sesta, com folhas mortas na cabeça. Já à fotografia que sorrateiramente me tiraram, queimo-a numa fogueira de chamas transparentes associado a um qualquer gás muito raro e pouco nobre.
Abdico única e exclusivamente da imagem pura, física, dos raios de luz que faiscam por mim adentro, da imagem tal e qual se pode pintar. Não abdico nunca de uma conversa com o pintor.
Abdico vampiricamente do meu reflexo no espelho na sua dimensão de ecrã de alta definição, mas componho a franja torta como me ensinou o meu pai, agora num jeito talvez mais moderno, como um pássaro exótico exibe a sua crista, reconhecendo cada fio de cabelo como um indivíduo livre, capaz e ciente.
Porque virar cego é inconveniente e perigoso, pisco os olhos ao contrário. No lugar de os fechar uns instantes de poucos em poucos segundos, mantenho-os fechados por definição e abro-os de quando em quando. Restam algumas imagens quietas depositadas contra a minha vontade no fundo das inúteis orbes brancas que ficaram na minha cara como vestígio evolutivo. Infelizmente, ainda preciso delas. Não para ver. Apenas para não cair.

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