Sunday, July 24, 2016

Anestesia

Como deve doer não ter alguém com quem contar.
Ser estrela de um monólogo insosso e deixar que as nossas palavras falhem, débeis, no ar enregelado da vida glaciar. Cada palavra, estalactite obesa, cai no solo pesado da toca de coelho em que se vive e ninguém lhe ousa tocar, com medo de ficar impalado ou de sentir o dedo de um morto contra o peito, acusador.
Felizmente não sou um deles, desses peixes num aquário improvisado de um saco de plástico que contemplam o quarto de papel de parede florido tingido com manchas de suor e com cheiro a velho. Velho de vinte anos.
Não, eu tenho companhia. Uma mão pousada no meu ombro esquerdo, mesmo por cima da contractura muscular que tanto me maça. A mão escova-me, serena, "um pouco mais abaixo", digo, "perto do peito". Calmo, sou um dia preguiçoso do melhor Verão da minha vida, do melhor dia de todas as nossas vidas, pois um dia na companhia dela, da minha companhia, é a flor da inveja de todos os que olham e a observam, com um sorriso branco, sempre a menos de dois passos de mim.
Ela toca uma melodia saudosa no piano, com dedos encaracolados e, por cima dessa melodia, com a outra mão, toca notas firmes e desconfortáveis, que me acordam da minha sesta sobressaltado.
"Porque me acordaste?"
"Porque te quero perto de mim."
Derreto como um cubo de gelado de limão num dia de Sol, mas ela faz-me toda a sombra de que eu preciso.
Abraço-a. O seu casaco de malha quente pica-me o pescoço e faz-me sorrir masoquista. Ela não me sorri de volta, mas agarra-me mais firme, não me quer deixar.
Sento-me, afogo-me no cadeirão que tem já a forma do meu corpo marcada. Sinto-me cansado. Ela massaja-me as costas rijas e chama-me de bebé mimado. Eu não respondo.
"Um pouco mais abaixo", digo eu. "Perto da minha escoliose."
Quase adormeço, mas sem sonhar. A respiração dela é tudo o que ouço. O piano toca sozinho, enquanto ela faz caretas para gozar o meu ar sempre sério, sempre amuado.
"Este és tu, ó", diz, franzindo o sobrolho exageradamente, com a ajuda de dois dedos.
Sorrio e ela sorri-me de volta, vitoriosa, sabendo-se dona do meu sorriso.
"Tenho sede", digo, "traz-me um copo de água."
Ela afasta-se, contemplo-a de costas sem desviar o olhar, até o perder de vista.
Sinto-me só por segundos. Será assim que os outros se sentem? Os peixes de plástico, os ogres debaixo da ponte, eremitas urbanos, homens sem poesia, todos e cada um que canta um triste soneto de olhos vendados e ombros caídos sem ninguém para lhes corrigir a postura.
Fico nervoso, ela está demorada. Eu não... ela faz-me falta! Volta. VOLTA!
Ouço passos apressados e ouço depois voar e vejo-a, preocupada.
"Estou aqui, acalma-te", diz-me, delicada.
Não, eu tenho companhia. Sei que tenho sempre alguém com quem contar. Ela bebe um pouco de água fresca e bebe também um pouco da minha vida. Dá-me água a beber directamente da sua boca etérea e eu acalmo-me.
"Obrigado. Obrigado, Solidão."

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