Tuesday, July 26, 2016

Folhas castanhas
brotam do tronco verde,
por entre as flores
incolores.

E um passo é dado,
enquanto que um lado
da alma reage
mas é logo consumido.

Em contacto com o mar
venenoso, os olhos
vêem. Mais do que viam
antes de cantar.

Não percebo
porque regridem as coisas,
se invertem o trevo
ou eu caio nas minas.

Poema de Amor

Quando me olhas com olhos doces, cheios de ternura,
apetece-me arrancá-los, guardá-los num frasco,
num químico qualquer que lhes preserve a frescura,
porque os teus olhos são flores da planta do asco.

O aroma dos teus lindos cabelos revoltos de chocolate de leite
lembra-me a lama penhocenta de um dia de Verão chuvoso
em que a roupa cola ao corpo suado e pegajoso.
O teu cabelo, como as tuas palavras, é mais seboso que o azeite.

Tens um sorriso tão brilhante como o Sol da Primavera,
mas o Sol queima a pele até chamuscar
e até o meu coração no peito arde pois, pudera,
eu no peito nem sequer uso protector solar!

A tua voz sedutora é como fios de linho
e quando gemes deleitosa ouve-te até o vizinho.
O problema é que nunca foste de grandes gemidos, ou embaraços
e a única pessoa que te ouve gemer é quem te tem nos braços.

Abraça-me com as tuas mãos delicadas, minha ninfa despida,
enquanto eu sorrateio no teu leito uma carta de despedida.
Não uma carta grande, pois eu não tenho tempo para caridade,
bastam umas palavras tortas - "Adeus, não deixas saudade."

Paris

Ah, estivesse eu em Paris, namorando a vida,
enquanto uma voz doce me diz, calando-se logo de seguida,
"Deita-me e cobre-me, pois o mundo é gelido."
"Dá-me um novo nome", diz-me ela, com um sorriso pálido,
um sorriso completo de quem ainda não foi corrompido,
de quem agarra numa só mão fechada a pasta da vida,
aquela papa volátil que me escorre entre os dedos,
mas não a ela. Morrem todos os meus medos
quando a vejo leve, dançando no ar, no próprio ar
que é tão pesado que a deixa bailar
sobre ele. Aqui, nesta cidade electrizante,
onde os carros rodam num ruído incessante
e chamam por mim todos os monumentos
e lugares míticos, gritam por mim, sedentos
de me mostrar a sua beleza e a sua importância,
mas eu, no fundo, quero é distância
de Monmartre e dessa torre que se assemelha
a um poço de petróleo feio, e também da velha
que canta belas chansons na rua.
Não sei que ideia é a sua,
não quero ouvir a J'attendrai, La Bohème,
La Mer, La Vie en Rose e a minha mente treme
só de ouvir falar no museu do Louvre.
Tirem-me tudo isso da frente, arre!
Paris é para amar, não para amar Paris.
Paris é o último andar de um prédio, e quem diz
o último, diz o segundo, ou o primeiro,
ou o rés-do-chão, ou o prédio inteiro.
No que me concerne, se nunca subi mais alto,
este andar é o último, e tenho um sobressalto
quando acordo de manhã nos lençóis húmidos,
pois temo acordar depois destes dias todos
e perceber que Paris é um lugar na minha cabeça,
montar um odioso puzzle, peça por peça
e acordar estremunhado, sozinho,
com a sensação de que, como que tonto de vinho,
não se querem levantar os braços, ou até um dedo.
Não tenho forças. É este o meu segredo -
tenho uma cidade inteira dentro de mim
e, dentro desta cidade, escondendo um sorriso assim
meio maroto, estás lá tu.
Eu inclino a tua cabeça, suave, e dou-te um beijo cru,
mas é um beijo que me sabe amargo e a sal.
Afinal, como te posso ter em Paris, se nunca te tive em Portugal?
É indiferente
quando a mão, posta no meu ombro,
queima a carne, queima viva;
quando a angústia se ergue dos escombros,
sorrindo, altiva.

É indiferente
quando nasce um, ou morre gente -
pobres, humanos, carnais -
não mais, nem menos que animais,

É indiferente
quando os rebanhos se passeiam
(que é gente, mas em cadeia)
porque eu sou tolo e sou doente.

É indiferente
quando se escondem as verdades,
porque os pensamentos são tempestades
e esses são metade alma e metade corpo,
os pensamentos.

Eu sou indiferente.
Um ínfimo abanão -
vira a Terra do avesso.
Um dia frio de Verão -
pára o mundo
e eu estremeço.

Mas que doce fragilidade!
Mas que humana sensibilidade!
A desta blasfema orbe
que gira ainda com a minha morte...

Com(')os Lobos

Consegues ouvir os lobos?
Ouve os lobos,
sente os lobos,
sê os lobos.

Uiva alto para a Lua,
come a carne, come-a crua;
e quando caçares a tua presa
cai sobre ela de surpresa
ou ela escapará ilesa.

Rasga a pele, sente o sabor
do sangue na garganta,
bebe tudo sem pudor,
só quem não caça não janta.

Hoje é noite de lua cheia,
trinca a tua presa na veia
e deixa o vermelho escorrer,
escorrer até que amanheça
e nasças como um novo ser.

Um dia acordei sem mais folhas em branco. Então,
gastei todas as minhas moedas, até à última,
numa encomenda de cadernos
para escrever tudo o que tenho na cabeça
até ficar nu e despojado de palavras.
Vieram dois camiões recheados de folhas agrafadas.
Que combinação perfeita!,
como um dente-de-leão na mão de uma criança
tenho mil histórias para contar
e mil cadernos de capa preta.
Seria tão feliz se me tivesse lembrado
de comprar uma caneta
e não me visse forçado a escrever
com o meu próprio sangue.
Morte a Eros
morte a Thanatos
e eu ergo-me
e o meu espírito.

Fado Ninja

Aprendi há largos anos, pinga a pinga, a animar a minha sombra com vudu.
Duplico-me e faço de mim a minha melhor companhia.
Vejo a minha cara reflectida em cada folha de cada limoeiro e feto e mimosa e urtiga.
Levanta-se a minha mão do lodo cheio de Sol e acena-me um Olá rochoso.
Todos os dias.
Pelo menos, todos os dias em que lá vou morrer.
Ouço música rock ao longe, mas tenho um pica-pau a marrar-me em cada orelha.
É tão bonito o seu canto.
"Passas muito tempo sozinho", dizem eles.
Pergunto-me, como podem eles todos coleccionar companhias, quando lhes falta o amigo zero?
A verdade é que não sei o que é a solidão, sou imune.

Sunday, July 24, 2016

Roda a Roda à roda,
mecânica, roda os números
e a máquina
e tudo roda.

E os vectores correm
na roda do tempo,
saltam eons e realidades
e tudo o que roda não é real.

Se num salto eu rodar
na roda do tempo,
rodo eu, não roda o tempo,
e o espaço, ei-lo ímpar.

Anestesia

Como deve doer não ter alguém com quem contar.
Ser estrela de um monólogo insosso e deixar que as nossas palavras falhem, débeis, no ar enregelado da vida glaciar. Cada palavra, estalactite obesa, cai no solo pesado da toca de coelho em que se vive e ninguém lhe ousa tocar, com medo de ficar impalado ou de sentir o dedo de um morto contra o peito, acusador.
Felizmente não sou um deles, desses peixes num aquário improvisado de um saco de plástico que contemplam o quarto de papel de parede florido tingido com manchas de suor e com cheiro a velho. Velho de vinte anos.
Não, eu tenho companhia. Uma mão pousada no meu ombro esquerdo, mesmo por cima da contractura muscular que tanto me maça. A mão escova-me, serena, "um pouco mais abaixo", digo, "perto do peito". Calmo, sou um dia preguiçoso do melhor Verão da minha vida, do melhor dia de todas as nossas vidas, pois um dia na companhia dela, da minha companhia, é a flor da inveja de todos os que olham e a observam, com um sorriso branco, sempre a menos de dois passos de mim.
Ela toca uma melodia saudosa no piano, com dedos encaracolados e, por cima dessa melodia, com a outra mão, toca notas firmes e desconfortáveis, que me acordam da minha sesta sobressaltado.
"Porque me acordaste?"
"Porque te quero perto de mim."
Derreto como um cubo de gelado de limão num dia de Sol, mas ela faz-me toda a sombra de que eu preciso.
Abraço-a. O seu casaco de malha quente pica-me o pescoço e faz-me sorrir masoquista. Ela não me sorri de volta, mas agarra-me mais firme, não me quer deixar.
Sento-me, afogo-me no cadeirão que tem já a forma do meu corpo marcada. Sinto-me cansado. Ela massaja-me as costas rijas e chama-me de bebé mimado. Eu não respondo.
"Um pouco mais abaixo", digo eu. "Perto da minha escoliose."
Quase adormeço, mas sem sonhar. A respiração dela é tudo o que ouço. O piano toca sozinho, enquanto ela faz caretas para gozar o meu ar sempre sério, sempre amuado.
"Este és tu, ó", diz, franzindo o sobrolho exageradamente, com a ajuda de dois dedos.
Sorrio e ela sorri-me de volta, vitoriosa, sabendo-se dona do meu sorriso.
"Tenho sede", digo, "traz-me um copo de água."
Ela afasta-se, contemplo-a de costas sem desviar o olhar, até o perder de vista.
Sinto-me só por segundos. Será assim que os outros se sentem? Os peixes de plástico, os ogres debaixo da ponte, eremitas urbanos, homens sem poesia, todos e cada um que canta um triste soneto de olhos vendados e ombros caídos sem ninguém para lhes corrigir a postura.
Fico nervoso, ela está demorada. Eu não... ela faz-me falta! Volta. VOLTA!
Ouço passos apressados e ouço depois voar e vejo-a, preocupada.
"Estou aqui, acalma-te", diz-me, delicada.
Não, eu tenho companhia. Sei que tenho sempre alguém com quem contar. Ela bebe um pouco de água fresca e bebe também um pouco da minha vida. Dá-me água a beber directamente da sua boca etérea e eu acalmo-me.
"Obrigado. Obrigado, Solidão."
Onde estão agora as tuas palavras?
Palavras que eu costumava segurar
na palma da minha pálida mão,
desfazendo-as letra a letra
como as pétalas de uma pequena flor.

Porque é que o teu cabelo
já não flutua nos ventos amenos,
tornando-os carmesim e
enrolando o meu pescoço suave e gentilmente
até eu sufocar?

Quando é que as tuas canções voltarão
a rasgar rachas e fissuras
no meu coração glaciar,
enquanto a tua voz o derrete,
até as cinzas do meu próprio coração
queimarem pelas minhas veias fora?

As únicas palavras que ouço são as minhas
e elas são frias, frias, frias.

Saturday, July 23, 2016

Poema em Branco

Há dias sem memória.
Flutuam sorrateiros no calendário,
esses dias brancos como o algodão amargo,
brancos como o sal e com um travo salino, também.
São como um coágulo na artéria da vida,
sim!, um fio de algodão coagulado em novelo
na manta quase confortável que nos envolve,
um pouco quente de mais e áspera no pescoço, esta manta da vida.
AH, TIREM-ME ESTA COMICHÃO!
Quem nunca teve esta sensação de comichão incontrolável
que parece escapulir-se por todas as frinchas do corpo,
escondendo-se até quase a esquecermos e, quando a olvidamos,
lá está ela altiva, arrogante, presunçosa.
Aquela comichão incontrolável que parece vir de um certo foco,
mas quando coçamos nesse ponto percebemos
que não era ali a origem
e temos de coçar o corpo todo até perceber
de onde vem aquela cócega, e há ainda
uma unha mal limada que insiste em dilacerar a carne
e raspa, coça, coça, raspa, coça, coça, coça
e a carne é já carne-viva
e a pele é comichão-vida.
Dizem-me os meus avós e os meus tios que não se deve coçar,
mas há dias tão comichosos e salgados
que eu, como um bacalhau estendido,
fico o mais parado e rígido possível.
Assim, a comichão não se sente, mas
basta um pequeno gesto ou movimento,
basta ouvir o zumbido de uma pequena abelha,
basta ver um pássaro voando alto no ar
- um condor, ou um com comichão -
para a MALDITA SENSAÇÃO RETORNAR.
Tivesse eu sempre quem me coçasse as costas gentilmente,
com unhas de seda maravilhosamente aparadas e polidas
e bem-cheirosas e sensuais...
Quem sabe, até onde me coçariam?
Até onde se atreveriam a chegar?
E valerá a pena o risco?
Há gente com unhas tão mal-tratadas.
Unhas podres, acabadas e bolorentas.
Unhas feitas de velcro, da parte mais rija,
aquela onde colamos a parte fofa.
E, mesmo que as unhas sejam suaves,
se eu tiver no comichão no rabo
quem é que ma vai coçar?
O melhor mesmo é deixar passar os dias brancos, lentos...
Talvez um dia me atreva a pegar numa caneta
e a esboçar a preto um rabisco, ou umas palavras,
neste dia branco, folha de papel.
Talvez esse dia seja hoje.
Aqui me quedo, inconsolável, incoçável.
Neve, nuvem, dente-de-leão,
espuma do mar, pomba, pus,
cal, vestido de noiva,
osso, sémen
folha de papel virgem.

Quadrado Formoso

1

Para lá da fronteira do sorriso
encontram-se dentes amarelos,
pútridos. Ainda assim belos
são os lábios carnudos.

2

O meu futuro esconde-se
para lá de um pálido espelho.
A mão, curiosa, pergunta
se algum dia serei velho.

3

O mundo é tão solitário!
Pousa-se no ombro uma mão,
um sorriso trespassa-me.
Não, solitário não,
porque cinco pessoas fazem um mundo.

Este dorme pensando,
à direita pensam sonhando,
um carrega os três
e o quinto é cego.

4

I

Um sonho na floresta,
no vento que me ergue
à Lua,
e uma besta
incansável persegue
uma Deusa nua.

II

A mente cai, sonha,
e o corpo flutua entre
as árvores, e no ventre
de uma nébula
branca, fofa e dispersa
Ouve-se uma conversa.

III

São as flautas que cantam
as lendas dos sonhadores
que ante mim se levantam,
que jazem hoje elevados
nos céus dos que amores
colheram nos cedros entrelaçados
desta floresta.

IV

Árvores ocas de ilusão,
os vossos ramos nos indiquem
aos céus negros de cristal,
e erguem-se as vozes num ritual,
comprometidos, mão com mão,
neste sonho na floresta.

A Lua alta no
firmamento -
Sentinela competente.

A atmosfera fria
no Inverno -
Doce prisão.

Uma gota de orvalho
cai serena -
Estrilho reverberante.

Monday, July 18, 2016

Bifaria

Não há bifes redondos.
Há-os com ou sem sebo,
com mais carne ou menos osso,
seja fino ou seja grosso,
é algo qu'eu não percebo.

Porque não há bifes direitos?
Eu insisto - ando a jeitos
que não quero saber se
o bife é tenro ou saboroso
nem se o asso, frito ou cozo.

Se o sangue escorre mais,
ou se este é vermelho, encarnado,
magenta, rosa, fuscia, ou uma das tais
cores que só as mulheres entendem,
ou se este é bem ou mal passado.

Não me interessa, não quero saber,
olho só para os contornos
e não me cabe na cabeça que,
tirando ossos, pele e cornos,
o bife não possa ser
redondo.

E ai do espertinho que me alarme
que um hambúrguer é um bife redondo,
o que se quer num bife é carne,
tirada da perna ou lombo,
porque de ar, o ar está cheio.

Já sem paciência alguma,
pego então na minha faca
e em bifinhos eu corto os peitos,
porque a carne é sempre fraca
e não há bifes perfeitos.

Sunday, July 17, 2016

Ecrã

A vida não é para mim,
sou meramente um espectador.
Miro o mundo, contemplo a dor
e morro a minha vida assim.

Pintei, então, uma janela caiada
com pó do meu próprio osso
e uma cortina de cetim bordada
com sonhos que tinha em moço.

Do vidro baço, vejo um duro
mundo pobre e sem nexo,
e vidrado no vidro escuro
vejo ainda o meu reflexo.

Ah, se eu pudesse ser um deles!
Dançar à luz da Lua, dançar
e cantar até me faltar o ar
naquele mundo tão reles.

Mas os meus cantos são abafados.
Eu sou uma mão esticada a medo
que acordou demasiado cedo.
A vida não é para todos.
Sinto o sangue a correr nos ouvidos
e a folha a fugir da mão.
É assim quando se fecha os olhos
e se escreve com o coração.