Thursday, November 21, 2019

A Corte das Cortinas Roxas

És a doença ou o sintoma?
Não faças cara de cacto
nem pose de arlequim,
se és a doença exijo a cura,
se és sintoma... deixa-te estar.
Há quanto me conheces?
Trombas de cervo e pés de peixe,
mas sempre bem vertical,
danças comigo quando não mexo
e abraças-me só no final.
Deixa-me estar,
se não dancei foi porque não quis,
a valsa era bizarra
e o salão não era euclideano
ou pelo menos não tanto como eu queria.
Euclides está morto
e tu talvez também devesses estar.
Mas já que aqui estás, ainda,
vai ver se o céu está roxo.
Se não estiver, caminha,
caminha até que ele esteja
e não te atrevas a voltar
até que um pequeno vislumbre
da mais cândida roxidão
te revele a tua fraqueza.
Deixa que essa centelha perdure,
deita mais lenha no teu carvão
e mais carvão no motor
da água de aquecer os pés.
E depois deita-te. A ti.
Pés estendidos, bem lavados,
pálpebras pintadas de roxo por dentro
e deixa-te dormir, ao relento.
Deixa-te dormir
e deixa-me estar.

Saturday, November 16, 2019

Maria da Inocência

Vem, pobre inocente,
deixa-me que te mostre
o outro lado do mundo.

Dá um passo em frente,
fecha os teus olhos
só um segundo.

Vem, mulher de virtude,
descontrai a face,
entreabre a boca.

Sim, faz bem à saúde,
não ficarás débil,
talvez de voz rouca.

Vem, rapariga monge,
larga a minha mão
mas não pares, não.

Esses tambores ao longe
são só o bater
do teu coração.

Vem, minha descarada,
deixa-me que te mostre
o outro lado do mundo.

Vês, não custou nada,
e juntos chegámos
bem até ao fundo.

Tuesday, November 12, 2019

A Fábula de Jorge José Espiga

Parte 1

Jorge José de Souto Espiga era niilista.
Por vezes, lamentava a sua condição repleta de vazio.
Na maior parte das vezes aceitava-a, aquela infecção pragmática que o impedia de ver a beleza no mundo. Aquele tédio de tudo. Para Jorge José, todas as coisas eram iguais e a diferença entre todas as coisas era sempre a mesma diferença.
Não fazia questão de mostrar a ninguém o quão niilista era, fazia-o em sigilo. Afinal, se o anunciasse em voz alta, quem o ia saber era apenas humano e inútil como ele próprio e não havia diferença.
Pensava por vezes na ciência e na fútil ambição pelo espaço, mas o espaço para ele era aborrecido porque era demasiado simples, sempre os mesmos átomos, sempre os mesmos astros. Para Jorge José, a humanidade só poderia crescer para dentro, porque para fora não valia a pena. Nunca valera a pena. Não havia diferença.
As artes tinham-no cativado no passado, até se aperceber do quão humanas eram. A imagem para ele já nada significava, não via beleza nas coisas de se ver. Quando se deparava com algo que cheirasse a estética, sentia-se desamparado. Como um daltónico aponta e pergunta a alguém, "que cor é?", Jorge José olhava uma paisagem, uma pessoa, um quadro e perguntava, "é belo?"
Tentou a poesia, mas esta estava tão atrasada em relação aos tempos que não lhe pareceu valer a pena. Não havia diferença. Começou então a desprezar as palavras.
“As palavras pegam em nós, pequeninos,
E removem-nos da natureza.”
Pensava para si.
Ao culpar a linguagem, a sua ligação com o mundo entrou em curto-circuito.
Quanto mais conhecia deste mais se aborrecia. Já não havia qualquer tipo de magia num quintal escuro e abandonado pois sabia que era apenas mais um quintal.
Mesmo com a sua falta de emoções, podia-se dizer que Jorge José era um homem triste. Não era triste por tristeza, mas por falta de alegria. Por outras palavras, era neutro, o que na linguagem corrente é englobado dentro do conceito de triste. Era a Suiça das emoções, sem a ganância associada.
O próprio dinheiro e a matéria tão pouco valor tinham para ele que vivia na miséria por falta de vontade de viver na opulência. Identificava-se melhor com uma vida vazia, como ele. Era um homem atormentado. Pensava muito, era existencialismo cristalizado. Quando o existencialismo toma forma humana, aí, era ele.
Frequentemente, algo gritava dentro dele e era a própria voz dele e não se calava um segundo e não se calava um segundo e não se calava um segundo.
O mundo é preto e branco
Não era esquizofrenia porque ele não ouvia vozes.
O suicídio é a reposta
A única voz que ouvia era a própria.
Não sabes que o sentido da vida é o cancro?
Não há um de nós que para ele não caminhe
Porque das vozes dos outros só ouvia ruído.
A vida é como os mortos
Eco.
Os mortos são como a vida
Resíduos de tudo aquilo que ouvia ao longo do dia.
Não faz diferença
Não fazia diferença.
Não faz diferença
Não fazia diferença.
Não faz diferença
Não fazia diferença.
Não faz diferença
Não fazia diferença.
Decidiu perguntar à voz.
Quem és tu?
Sou tu, mais novo
Quão mais novo?
Tão mais novo quanto te levou a ouvir esta resposta
Riu-se. Ria-se muito quando estava sozinho.
Um dia apercebeu-se de que queria mais do mundo
que sempre quisera mais do mundo
Então conheceu Carolina. Cortejou-a, beijou-a e levou-a para a cama. Ela era muito afectuosa e ele partilhava com ela emoções que não tinha. Carolina engravidou e era menino. Jorge José queria chamar-lhe de Frederico em honra a Nietzche. Ela disse:
“Vamos chamar-lhe Fred. Só Fred. É mais bonito e é o nome que (uma qualquer apresentadora de televisão) acabou de dar ao seu filho. Vai ser popular.”
Jorge José aceitou, porque não fazia diferença.


Parte 2

Jorge José educou Fred colocando o niilismo numa gaveta sempre que estava na sua presença. Mostrou-lhe o mundo, e enquanto lho mostrava percebeu que a apreciação do mundo e das suas coisas era mais cultural do que biológica e que, como todas as coisas culturais, podia ser preservada. Disse-lhe o nome dos pássaros do quintal, das estrelas do céu escuro e das plantas do caminho onde passeavam os dois cães.
Os legos, a Playstation, as brincadeiras improvisadas com os brindes dos ovos Kinder e os filmes da Disney ou da outra empresa parecida que toda a gente confundia, tudo lhe servia de ponte para o mundo. O filho cresceu e começou a escrever poesia, a defender os animais e a sonhar com profissões nobres e mundos brilhantes e utópicos. O pai não queria crer nas tendências românticas do seu filho, mas aceitou-as. Começou a aceitar mais do mundo, graças à presença do filho. Sempre com o niilismo no bolso. Sempre educando-o a ser. A ser. Como ele nunca fora.
Com a adolescência, Fred afastou-se naturalmente do conforto do colo dos pais. Arranjou uma namorada, queria estar sozinho, queria crescer, queria evoluir. A mãe preocupou-se muito, o pai deixou-o estar, para ele, não havia diferença.
Fred passava horas no computador
Descobriu primeiro os videojogos
Depois as piadas desinspiradas que circulavam por www aqui e www ali
Depois a pornografia
Depois os jogos com pornografia
Também lá fez amigos
Amigos que o compreendiam
E assim percebeu
Que somos um cérebro que possui um corpo
E não uma corpo que contém um cérebro.
E se ele podia ser apenas na rede e sem corpo, para quê sequer ter um corpo, para quê fazer parte do mundo físico quando se é uma mente, quando se é dados, e porque não juntar todas as consciências de todos os humanos numa gigante base de dados em harmonia sem os inconvenientes motrizes e biológicos?...
Continou sempre a vaguear pela rede
Conheceu o 4chan
E acedeu à deep web através da Tor
E viu tudo o que lá se vendia
E viu tudo o que lá se oferecia
E todos os vídeos mudos que por lá pairavam
E todos os gritos mudos das crianças que lá eram traficadas e das formas de se livrar de um cadáver e das drogas e seringas com sida que se vendiam e algo quebrou.
Não era a internet. Não era a música pesada que Fred ouvia. Não eram as companhias. As drogas que experimentou ou o álcool ou o tabaco. Não era a falta de exercício físico nem as complicações na relação com a namorada que se sentia rejeitada quando ele não tirava o cu da cadeira em frente ao ecrã. Não. O mundo… desligou-se. Como apenas ele o sabe fazer. Quando o mundo se sacode e alguns dos seus filhos caem da superfície da realidade.
Fred de Sousa e Espiga suicidou-se no dia do seu próprio nascimento, com 17 anos em ponto. Comprou uma corda, temperou-a para não que não irritasse a pele e enforcou-se. Foi a namorada quem o encontrou. Gritou muito.
No momento da sua morte, o último pensamento de Fred foi o medo de estar a desapontar o pai, que dedicara anos da sua vida a mostrar o quão bela ela é.
O que é um rio
-ou o mar-
senão um conjunto ininterrupto de poças?

Não tenhamos medo de meter a pata na poça,
afinal de contas
é a pata quem faz a poça.

Ainda que não tenhamos força de pernas
para deixar uma poça em cada passo,
caminhemos em passos de lã-
mas caminhemos.
Quem me dera nunca ter aprendido ciência.
Poder olhar alguém e ver o seu aspecto
sem pensar no esqueleto que está por dentro
todos os músculos e órgãos
e como todos temos pequenos cancros dentros de nós
que se poderão ou não desenvolver.
Ver apenas rostos com emoções estampadas
simples como os rostos o são
simples como as emoções o são.

E se não tivesse explorado tanto o cinema
talvez não visse todos os operadores de câmara
e o director
e tudo o que não aparece no ecrã
de cada vez que tento ver um filme.

E tu poderias falar comigo
sem risco de ser estudada
em cada palavra
em cada gesto
ou trejeito.

Th. Liouville

Diz o teorema de Liouville
que toda a função inteira e limitada é constante.
Eu não sei bem quem foi Liouville;
só sei que era francês,
que fazia matemática,
não sei sequer se gostava de matemática,
sei que agora está morto.
Talvez seja melhor assim,
a matemática continua...

Saturday, November 9, 2019

Os gatos de Kazanlak

Digo-vos que os gatos de Kazanlak
não são meigos por escolha - é a vida.
Qualquer restaurante que os atraque
é com promessas de comida.

São eles por uma fatia de fiambre
e nós por uma promessa de vida decente...
Os gatos de Kazanlak
são mais ou menos como a gente
(menos o fraque).

Stara Zagora

As árvores não têm pudor na sua nudez
porque se despem para o solo agasalhar
quando neste roça o vento frio.

Na sua amarelada tez,
despem-se à beira-mar,
despem-se à beira-rio.

Todas, sim, de tronco duro,
de peito à mostra e fruto rijo -
mas não as censuro,
não as corrijo.

Despem-se lentas, mas sem sedução,
folha a folha, sem rodeios;
e porque as plantas não têm visão,
não têm medo de olhares alheios.

Thursday, November 7, 2019

Os minutos não esperam pelas areias.
Escorrem impacientes e sem dó,
ignorando as horas e os segundos.

Os minutos, em si, são mais rebeldes
do que todas as outras unidades.
Enrolam-se nos erros do dia,
enrolam-se nas verdades.

Quem me dera não ter mais minutos de vida,
ter só horas e dias e anos,
ter medidas humanas e dignas,
sem semi-viveres e semi-planos.

Os minutos não esperam pelas areias...
Enquanto que os minutos escorrem,
as areias apenas caem -
como os marujos pelas sereias.