Saturday, August 5, 2017

8:95 AM

Saltei para lá da caixa de areia
e estatelei-me no chão duro de asfalto.
Estabeleceram que a caixa teria um limite
de mais ou menos cinco metros de comprimento.
Afinal de contas, o recorde mundial são apenas nove
e aqui não esperavam, obviamente,
que alguém saltasse muito mais do que metade disso.
Alguns riram-se, outros fitaram-me preocupados.
Parti ambas as pernas, mas
como todos sabem, osso quebrado não dói na hora,
o problema é o depois...

Tuesday, July 25, 2017

Aula de Recitação

Ninguém lê palavras bonitas da mesma forma.
Por exemplo, se eu escrever,
Amor. Amar. Coração.
Cada um ouvirá uma voz diferente na sua cabeça,
seja a sua, a de quem o ama ou a de quem se ama,
ligeiro ou apaixonado,
talvez arrependido,
talvez leve suspiro.
Amor. Amar. Coração.
Também as palavras cruéis são subtis
e personalizadas.
Se eu disser,
Morte. Morrer. Sangue.
Cada um lerá com um tom diferente.
Mesmo que eu dê instruções específicas
para as lerem com toda a sua ira,
cada pessoa tem a sua barra de raiva,
mais ou menos cheia,
como a barra de vida de um qualquer vilão,
num qualquer videojogo.
Morte. Morrer. Sangue.
Também ninguém lerá palavras bonitas da mesma forma
que lê palavras cruéis.
Talvez para quem cobice a morte
ou despreze o amor
o tom seja o mesmo.
Eros. Thanatos.
Amor. Morte.
Duas facas de uma lâmina.

Treno pelo Verso

Um dia vai acabar a poesia.
As estrofes não morrerão;
irão definhar, verso a verso,
como um sabonete esquecido
numa caixa cheia de água.
Nesse dia direi,
Haja poemas! Talvez eles acordem e passem a haver sob vontade própria, poemas sencientes, capazes de sair à rua sob os próprios pés, de dizer olá ao vizinho e ainda de lhe pedir uma xícara de açúcar. E se o vizinho responder com ar de poucos amigos.
Nesse dia direi,
Haja açúcar! Para adoçar os poemas, que tanto se esforçam por ser doces, mas são tentados pelo amargo sabor do café. E quando deixarem de explorar as criancinhas em África e na América de baixo, e me faltar o grão torrado, aí é que me queixo.
Nesse dia direi,
Haja café! E um petisco para acompanhar, uns amendoins salgados, ou daqueles com piri-piri que picam como o mais laranja dos melões que foi esquecido a amadurar, lá no fundo. Que não esqueçam todos eles...
Nesse dia direi,
Haja melões! Para nos alimentar, mesmo que não seja algo que se come todos os dias, mas como estes não são dias e hoje é dia de Verão, sabia bem uma fatia e mais outra de presunto no pão, que às vezes falta ao poeta, coitado de mim. E quando me acabar o pão...
Nesse dia direi,
Haja pão... País do sol nascente. Tanto dava para estar aí, sob uma das tuas cerejeiras, lendo um doce poema, comendo um pão de melão e beberricando um café negro frio de lata retirado de qualquer máquina de venda automática.

Saturday, July 22, 2017

Happy China

O afogado está bem pois está rodeado de água e água é vida,
Enquanto que os outros estão rodeados de mágoa e mágoa é nada,
Que é na verdade o contrário de vida: nada,
De bruços, crawl e costas, nada de jeito para se ver, até se afogar;
Nada aqui, nada ali, nada em lado nenhum.
O afogado não paga nada para se afogar pois já pertence ao clube,
Abre a boca e convictamente nos diz: "glub glub".

Friday, July 21, 2017

A Depressão no Taiti

No dia mais solarengo
Do verão mais molengão:
A Depressão refastelada,
Com uma sandes de flamengo
E uma doce pina colada,
Não de leite, mas de pressão.

De bikini e uma saia,
Numa toalha de praia;
Com óculos de lente escura
Que muito discretamente
Ocultam toda a loucura
Que reina no reino da mente.

Jaz muito discreta ali,
Furtiva no meio da gente,
E a quem a olha sorri
Com todo e cada dente
Da sua boca dourada,
Abismo cheio de nada.

Nunca vai à água banhar-se
Com medo dessas maleitas
Que dizem ditos e seitas:
Infecções, cancros, catarse,
Que podem por nós entrar
Quando levamos os pés ao mar.

Jardineira dos claustros da morte,
Arauto do solo infecundo,
Pergunto-te, rainha consorte
Dos castros sequiosos do submundo:
"Ó infertil filha de Ceres,
De mim, o que é que tu queres?"

Saturday, July 15, 2017

Os Amores Mortos

Se acordássemos todos os amores mortos
Quais seriam os seus queixumes?
Diriam que morreram de malnutrição?
Traição, monotonia, falta de tesão?
Prematuros, inoportunos, consensuais
Ou, se há tal coisa, excessivamente sensuais,
De todos os amores disponíveis
No currículo do coveiro das paixões,
Não encontraríamos um insatisfeito
Com o seu estado sepultado.
Implorariam, até, cheios de fé:
Ressepulta-me!, devolve-me
Com as mãos gentis de quem segura um bebé;
Firmes, como quem colhe o ainda mal maduro grão,
Às valas solitárias, mas serenas, do chão.

Wednesday, July 5, 2017

Lá fora está a chover;
É Verão.
Talvez na minha cabeça;
Chuva grossa.

Monday, May 15, 2017

O Amor Inadvertido

Ama-se mais do que se pensa amar.
Com uma face carrancuda e inércia muscular
olha-se outra, mais risonha e mais linda,
e ama-se, ainda.

Ama-se sem olhar e sem palavras,
cala-se e sente-se por dentro
quando as pupilas ficam bravas
e o peito repleto de alento
expele sufocos de idolatria
por quem nos sorriu mais aberto
ou se chegou mais de perto
da nossa expressão fria.

Ama-se sempre, sem cura,
e quando não se tem intenção
ama-se da forma mais pura
sem grilheta nem contenção,
ama-se, porque amar é loucura.

Thursday, January 5, 2017

You, me & me

You, me & me,
há dois eus em tu e eu
e eu já não sei qual é o meu,
se o da terra, se o do céu.

Um eu foi à música, muito calado
o outro cansou-se de ouvir fado,
mas gosta de passear na avenida
enquanto o primeiro pensa na vida.

Não sei qual deles o mais preocupado
com os teus olhos que metem dó.
fundiram-se, bocado a bocado,
formaram sem ti um corpo só.

You, me & me,
foste embora e deixaste-me aqui.