Friday, June 26, 2020

O rio que desce

Nos teus lábios, um rio -
sumo de fruta doce -
corre apressado, com brio,
como se um cavalo fosse.

Dos teus lábios pinga sereno,
pelo peito suave e alvo,
não sei se mel ou se veneno,
será perigo ou estarei salvo?

O teu ventre é vale ventoso,
o rio desce em delta aberto,
evita as frinchas de cada osso
e vai direito ao sítio certo.

Com caudal já reduzido,
o curso de água rouco
desagua sem libido
no estuário do teu corpo.

A Varanda

Na varanda há
dois copos de café
e tu falas comigo
através de canções.

Tu és água e eu sou pedra,
escorres por mim lenta
e erodes a casca
que me cobre e aperta.

As folhas caem
mais lentas das árvores,
lentas como pétalas,
cinco centímetros por segundo.

As tuas palavras por dizer
pairam entre as grades
e soltam-se da varanda,
lavam-se na chuva.

O que te quero dizer?
Já te disse demais...
Perdoa-me as palavras,
dou-te agora o meu silêncio.

M.

You're raining down my spine,
my painful painkiller,
and while you do
I slowly and gently
collect every drop of your fragrance
as you drip,
as you look into my eyes,
as you tell me about that song you love.

Sunday, June 14, 2020

Kompensan

A azia dos dias contamina
o sabor de todas as iguarias.
O pão é fel e até o mel o é.
O que me acidificou o ventre
foram os teus beijos de boca fechada -
sim, não te surpreendas,
pois a acidez da tua língua
em nada se compara à dos teus lábios.

Criatura de mau-amar,
enquanto me fitar a tua vista,
daqui nada me levará,
nem que o vento insista,
nem que o fado venha
mais a sua aguçada gadanha.