Thursday, June 28, 2018

Mu

Cabeça, vazio e pés,
pouco mais do que isso.
Cabeça para segurar o cabelo,
pés para segurar o vazio,
nada para o encher.
Corpo ermo, grande bolha de éter,
serve de arrumação para pequenas bugigangas que nunca comprei
e nas quais não sei se sequer alguma vez pus a vista.
Corpo-estante de plástico porque a madeira me está cara,
incha mais no inverno
e aumenta o risco de ganhar bichos dentro do corpo, no verão.
O corpo é vazio porque eu prefiro que assim o seja.

Tuesday, June 19, 2018

Carta de abdicação ao direito à imagem

Venho por este meio abdicar ao direito à imagem.
Não abdico ao conceito nem ao significado, apenas à imagem na sua forma mais cândida, estética, ao conforto de pousar os olhos num pássaro poisado sobre um ramo desabrochado, bem como à curva do peito de uma mulher que cai sobre a anca e as coxas como o caminho curvilíneo que levava à escola da minha infância. Não abdico nem das palavras doces da mulher, nem do que aprendi em dita escola, nem do que aprendi no caminho para a dita escola.
Abdico da imagem da floresta, mas conto as árvores como letreiros que anunciam a palavra, o conceito, árvore, e, em letras pequenas por baixo, pequenas descrições, carvalho ou castanheiro, salgueiro, chorão, alta ou miúda, com folhas ou desnuda. Tudo com número de série e código de barras encriptado e um carimbo oficial do ministério da botânica.
Não abdico da minha presença por baixo de uma dessas árvores a dormir uma sesta, com folhas mortas na cabeça. Já à fotografia que sorrateiramente me tiraram, queimo-a numa fogueira de chamas transparentes associado a um qualquer gás muito raro e pouco nobre.
Abdico única e exclusivamente da imagem pura, física, dos raios de luz que faiscam por mim adentro, da imagem tal e qual se pode pintar. Não abdico nunca de uma conversa com o pintor.
Abdico vampiricamente do meu reflexo no espelho na sua dimensão de ecrã de alta definição, mas componho a franja torta como me ensinou o meu pai, agora num jeito talvez mais moderno, como um pássaro exótico exibe a sua crista, reconhecendo cada fio de cabelo como um indivíduo livre, capaz e ciente.
Porque virar cego é inconveniente e perigoso, pisco os olhos ao contrário. No lugar de os fechar uns instantes de poucos em poucos segundos, mantenho-os fechados por definição e abro-os de quando em quando. Restam algumas imagens quietas depositadas contra a minha vontade no fundo das inúteis orbes brancas que ficaram na minha cara como vestígio evolutivo. Infelizmente, ainda preciso delas. Não para ver. Apenas para não cair.

Saturday, June 2, 2018

Retrato de um demónio que dança

Achei-te, demónio em forma de menina,
no caos de um dia frio de Abril
em que voavas sob a multidão, subtil,
sufocada pela tua sina.

Da tua boca, uma pronúncia arrastada da terra do sobreiro,
camuflada numa voz menina atrás de uma cortina de fumo,
ajuda-me, suavemente, a escolher o meu rumo
e vê-me hipnotizado por horas - ou um dia inteiro.

Os teus cabelos, como rio de sangue turvo,
escorrem directos, de forma devassa,
e, sussurrada no ar, fica uma promessa
de voltarem a pairar em cor de corvo.

És um espelho partido que ainda reflecte,
um retrato meu pintado por alguém que nunca me viu,
de uma tez tão pálida como a neve que derrete
lenta e sem compromisso, num compasso frio.

E o teu corpo dança na roda da vida,
dança como eu nunca soube dançar;
uma dança sensual que me convida
a estender-te a mão e ser o teu par.

Contigo dança um vestido de duas cores.
É branco e negro e roda contigo, mas não
é ambos ao mesmo tempo!, são
dois polos incompatíveis - o dos prazeres e o das dores.

Envoltos num véu negro, fino e inseguro,
encontrei dois olhos em espiral confusa.
Olhos plenos, que a minha face recusa
contemplar, pois procuram o mesmo que eu procuro.

Olhemo-nos então, distantes, até eu perceber
que, quando te contemplo da cabeça aos pés,
desprezo tanto quem tu és
quanto admiro quem tu queres ser.

Tu és o interlúdio entre o Céu e o Inferno,
mas, minha cara,
eu não me ajoelho
perante anjos nem demónios.