Saturday, December 22, 2018

O pouco que ainda há cá dentro
debate-se como um embrião ansioso.
Recusa-se a ficar;
quer sair, como tudo o resto...
Partir e deixar-me vazio
sem remo nem vela,
sem leme, sem suporte para o pôr sequer.

Não há porto em que a minha alma atraque.

Haverá sequer alma neste mar sem espuma...

Monday, December 17, 2018

Emília do segundo esquerdo

Emília preparou a sopa
e cozeu o vitelo em chama lenta.
Foi lavar a roupa
e pegou numa camisa cinzenta.

Encostou-a a si
e acariciou o tecido —
queria ir-se dali,
queria fugir do marido.

Ele chegou, comeu o vitelo
e quis tê-la nos braços.
Ela gritou, pegou no cutelo
e cortou-o em pedaços.

Agora Emília sorri aberto
bem trancada atrás das grades,
não quer ninguém por perto
e nada lhe dá saudades.

Friday, December 14, 2018

Qual é a forma
dos teus lábios redondos?
Quando queria descrever-me
fazia-o com todo o detalhe,
mas agora que quero recordar
a cor de um só fio do teu cabelo,
a memória flutua,
flutua só.

Thursday, December 13, 2018

Fogo vadio

Fogo vadio,
fogo de vista.
Não pares de arder
nem que o vento insista.

Fogo-fátuo,
fogo delator.
Onde há fumo há fogo
e onde há fogo há amor.

Fogo selvagem,
fogo deflagrou.
Maldita a beata
que em mim te ateou.

Fogo ardeu,
fogo fugiu.
Nunca mais ninguém o viu.