Tuesday, August 21, 2018

Salada de fruta

Relaxa, a vida não é
cerejeira sem ramos
nem amêijoa de lábios fechados.

E se o fosse, bastava
um escadote para a subir
ou um alicate para a abrir.

Há quem tente subir cerejeiras
de alicate
e quem se aventure
a abrir os beiços às amêijoas
a escadote.
Com um alicate bem comprido
ou um escadote de pinças
quem sabe, talvez...

A vida tem cerejas e berbigões.

Relaxa e pára para pensar.
Gostas mesmo de cereja e berbigão?
Quem tem pérolas é a ostra,
a amêijoa, não tanto.

Há vida feita de hojes
e vida feita de amanhãs
mas todos somos iguais
deitados num pomar
contemplando as maçãs.

A vida tem maçãs.
A vida sabe a maçã.

A maçã é um fruto
que agrada a toda a gente.
Em sumo, não tanto;
com álcool é diferente.

A vida não é a medida de nada.
Tem frutos da árvore
e frutos do mar.
Quando se misturam numa taça
vem uma voz indignada.

Na verdade, a vida não é
a medida daquilo que sou.
Um suspiro aqui, um grito ali
e pronto, já passou.

Monday, August 13, 2018

Amanhã é segunda-feira
e não, hoje não é domingo!
Rejubila! Rejubila!
Que se saltou em falso
o dia mais humano da semana
e não tiveste que te dar a ti mesmo
durante um dia
da tua recôndita existência.
Lancem foguetes,
ou não os lancem
para não incomodar a mão que trabalha,
a mão cortada que trabalha sozinha,
escreve relatórios em cursivo.
Cursa, a mão, cursa tão bem
que tem um canudo a fazer de braço.

Poema em forma de couve

Tens razão. Tens toda a razão.
Eu tenho palavras bonitas,
mas tu tens a razão
absoluta e indisputável
(indubitavelmente,
inquestionavelmente)
e dentro de cada uma das tuas razões
tens mais razões fractais
que roçam a beleza de um cristal de gelo.

A tua razão é tão sólida
que construíste com ela uma cidade
inteira, inteirinha,
cheia de todas as coisas que as cidades têm-
prédios e árvores e pessoas e cães
e a merda nas ruas e o rebuliço das seis
e cada uma das ruas tem cartazes
onde promoves o teu próprio decoro
bem como postes de luz raio-x
que perscrutam as meloas gigantes
no lugar da cabeça dos seus habitantes.

Indubitavelmente, inquestionavelmente,
trabalhas as tuas palavras com o amor
de quem esfrega um formão
num careto de nariz comprido
ou com ele tira a cera dos ouvidos
e aproveita para dar uma coçadela no cérebro.
Coça, coça...
pode ser que as ideias aflorem
e com os seus botões construas um jardim
na tal tua cidade.

(Tens o dom da análise absoluta)

Além do dom da análise absoluta,
(análoga ao dom do ouvido absoluto
que tinham as crianças daquele documentário
que vi no outro dia)
tens uma elegante abjecção
pelo uso das palavras de uma forma
não descritiva
liberal
recombinadamente absurda;
oi! oi! estou a usar palavras
sem seguir
regras
talvez porque sou assim
talvez para te causar comichão
e lá vais tu pegar no teu formão
coça, coça...!
coça enquanto eu me divirto
e você advirta-se também
do poder das palavras sem razão
ou - abjectivamente -
com quantidades moderadas
dela.

Para te fazer a desfeita
- mais, para te matar -
vou fazer tudo o que abominas
vou escrever palavras ácidas
nas paredes desta cidade
não
vou apagar todas as ideias
que tiveste até hoje
pior
vou pegar nelas todas
e gastá-las num só poema
todas as notas que carinhosamente
arremessaste para um canto da gaveta
todas as promissoras rimas e não-rimas
que julgavas um dia vir a colocar
num sensível poema cheio de razão
cheio de razões
e hoje é o dia
em que tos roubo todos da mão
e os largo ao mundo.

Analisa agora isso, vá,
pega nos cacos a que chamas versos
e recicla-os, reutiliza-os, renova-os.
Tens o dom da análise absoluta, tens...
Tu, porque não tens o dom da análise relativa,
não percebes como o poema é mais forte do que o homem
não percebes que as ideias são infinitas
que se as gastares outras mais fortes e melhores
tomarão o seu lugar
como um osso que se parte regenera mais rijo
e as palavras
ai, as palavras...
são a natureza a retomar o seu curso
são as cheias que engolem a cidade costeira
o glaciar que se desprende com o calor
e o tremor que abre rachas no coração.
Já não confio em mim.
Em tempos o meu maior confidente,
acreditava que cada risada
vinda do quarto do lado
pertencia a alguém com cara
e lábios e dentes e língua.

Hoje não sei, não posso saber
se é gente ou se é fantasmas
ou se eu próprio ri
e do que ri
e porque ri,
não tem piada...

Se a mim delego
tantas partes da minha vida,
que fazer, que fazer,
oh, toda uma vida nas mãos
de alguém em quem não confio,
alguém por quem tenho estima
mas não confiança.

Se na rua me decidir
a deixar o embalo dos peões
e a caminhar com os carros,
que será de mim, que será de mim,
ou se tomar os comprimidos errados
ou porventura mergulhar
num lago demasiado fundo
que será de mim que não sei nadar
mais que uma dúzia de metros,
que será de mim...

Que voz é esta que soa
ao piano contemporâneo
dos compositores malditos
e absurdos,
onde foi a minha,
ai onde foi a minha?
Não era uma voz doce
mas era minha
e eu aceitei-a...

Compreendo que eu seja eu.
O espelho é o espelho
e eu sou eu,
certo.

E compreendo que
quem deposita a confiança
é também o depósito,
certo.

Só me custa perceber
por que razão
as minhas pegadas
estão voltadas
para trás.
Para trás,
vejam lá!

E porque é que
quando baixo os braços
eles não pendem
parelelos ao corpo,
porque têm espasmos
que não mos deixam baixar
nem erguer verticalmente
ortogonalmente...

Não percebo o porquê
de de manhã
vomitar moscas,
sim,
moscas!,
antes de poder começar o dia,
um feixe de moscas ininterrupto
com todo o seu zumbido,
toda a sua asquerosidade,
e toda a sua falta de sonho
e de rumo na vida.

Tirem-me de mim! Tirem-me de mim!
Descarnem o meu corpo
da minha mente
e deixem-me ser sem ser.
Deixem-me só ser, sem ser...

Saturday, August 4, 2018

Queixume para cordas, percussão e solidão francesa

Ai Teresa,
que eles são tantos
e portam tantas máscaras
tão diferentes
uns de olhos pintados de negro
outros de nariz aguçado.

Ai Teresa,
as mãos deles
roçam o ar que me rodeia
e as unhas redondas e bem tratadas
dão mais pavor que as garras podres.

Ai Teresa,
acode-me,
que as vozes são tantas
e tão harmónicas
que uma delas há-de reverberar
com a frequência do meu coração.

Ai Teresa...
Ai...
Eles estão tão perto
e tu tão longe, Teresa...

Ai Teresa...

Ai Teresa,
segura-me
que eles vêm a mim.