Monday, October 3, 2022

Quadra oculta da Emília

Emília não matou o marido, não...
Não pegou no cutelo, não teve arrojo.
Apenas sonha com a doce prisão
e sofre estóica, abraça-o com nojo.

Emília do Segundo Esquerdo v2

Emília casou de branco.
Gostava dele pela alma,
da sua inerente calma
ainda que ele fosse manco.

Agora nada é como d'antes.
Ora lhe oferece diamantes,
ora lhe oferece tabefes
por ela não dizer bem os éfes.

Emília preparou a sopa
e cozeu o vitelo em chama lenta.
Foi lavar a roupa
e pegou numa camisa cinzenta.

Encostou-a a si
e acariciou o tecido —
queria ir-se dali,
queria fugir do marido.

Ele chegou, comeu o vitelo
e quis tê-la nos braços.
Ela gritou, pegou no cutelo
e cortou-o em pedaços.

Agora Emília sorri aberto
bem trancada atrás das grades,
não quer ninguém por perto
e nada lhe dá saudades.

Já não tem diamantes, já não tem nada
mas antes que anoiteça
reclina a cabeça
e dorme descansada.

Wednesday, August 17, 2022

Sou poeta, sim, mas não trovador.
Não me borboleteiam emoções no peito.
Na verdade não me borboleteia coisa nenhuma
em parte alguma.
Porque as borboletas estão lá fora
e eu estou cá dentro
e nunca engoli uma borboleta
nem dei à minha alma assente na Terra asas
nem projetos de asa
nem se sequer tecido com que se possa
fazer asas
nem barbatanas
nem qualquer outra estrutura orgânica
ou mecânica
motriz.
A alma em si não é orgânica
nem mecânica.
As ideias ora vão para fora
ora voltam para dentro,
mas nunca ficam a fazer sala,
nunca deixo que de mim se aproveitem
sem pagar renda.
Assim, sempre que a cobro
certifico-me que não resta renda
com a qual tricotar asas.
Mantenho a minha hegemonia
sobre o meu corpo
e tudo o que nele reside.

Wednesday, July 27, 2022

Tabela espelho

Dói absolutamente
viver ausente.
Não menos dói
viver-se ciente
de que se é ausente.
E nada dói
com tanto fervor
que não sentir
essa mesma dor.

Monday, July 18, 2022

Janela fechada para a rua
e aberta para dentro
do torso que sua.
E o vento que não perdoa
enregela os ossos
como aguda coroa
de vidro quebrado.
Tenho...
caráter não insulado.
O vento rodeia
e em descida espiral
zumbe aos zigue zagues
zoando na zona final
e distribuindo por mim
as sementes do mal.
Não posso abrir
janelas rasgadas
nem encerrar
janelas seladas.
Nem na poesia,
nem sequer
nos contos de fadas.

Tuesday, March 29, 2022

Karabakh


Não chove menos na frente de batalha
do que nos campos irrigados.
A lama mantem-se espessa,
grude-te os pés pesados,
pede-te que regresses.

A arma pesa,
a alma pesa,
uma mata e outra morre;
Os olhos turvos,
os ossos curvos
alguém grita, alguém corre.

Tu que lutas pela tua terra fora da tua terra.
Tu, cuja mãe e irmã rezam de joelhos esfolados
sem mais lágrimas que lubrifiquem a alma.
Tu que tens apenas dezoito anos.
Um dia eu lutarei por ti.